Faze o que tu queres.
Depois, cumpre a pena, pois é tudo da lei.
A arte rupestre é encontrada em rochas e cavernas praticamente do mundo todo, algumas com 42 mil anos de idade, o que sugere ser inerente à humanidade a necessidade de expressão. Aqui é a minha caverna e as cifras em texto são o esboço de uma expressão rupestre contemporânea, pop, descompromissada, sem erudição, politicamente incorreta e altamente preconceituosa. É alvo de flechas flamejantes, ou não, como diria caeta.
Dizem os caras que o homem começou a andar com os lobos por conta das vantagens em se usar alguém para ajudar ou mesmo fazer nosso trabalho. Cada indivíduo ou comunidade selecionando deliberadamente as características que mais conviessem – caça, guarda, alarme, guia, ataque... – apropriando-se da acuidade dos sentidos caninos. Amansaram-se os bichos e eles viraram cachorros. Outros continuaram putos e ojerizados com a gente, permanecendo longe, selvagens, livres, cautos, lobos. Lobo mau.
Mas eu acho que o negócio é um pouco diferente. Eu acho que o homem e o cão começaram com essa promiscuidade por causa do prazer em andar no mato junto com o outro. Acho que nasceu da curiosidade, do cheiro de comida, e uma vez que o olhar de um homem cruzou com o do lobo andando ao lado, nasceu o vínculo. Um olhar encontra no outro o tipo de compreensão, positividade, segurança, que a sua própria espécie não conseguiria mostrar.
Talvez a nossa igualdade, que na vida comum parece não existir nem a pau, seja uma verdade. Uma verdade que pode ser muito pesada. A relação com um ser que é de outro tipo, outra consciência, e ainda assim com mesmo valor, talvez isso traga uma pouco de alívio. Alívio de ser gente. Alívio pela experiência de uma interação que exclui um intermediário: a linguagem. Transmissão com altíssima velocidade e fidelidade.
É bom ter amigo de todo jeito, everybody knows. Cada um faz entender um lado da gente.
E mais: pra ser poético, eu diria que os cachorros são os embaixadores dos animais no reino humano, tentando usar seu prestígio entre nós, quem sabe, pra mostrar que respeito é bom e conserva os dentes (nesse caso, todos os ossos do corpo e ainda a terra pra enterrá-los).
Acho que o homem percebeu, há muito tempo, que troca franca de olhar com um cachorro faz muito bem pra saúde. Do corpo e da alma, do cachorro e do homem.
Depois de uma noite e madrugada inteira de viagem, José Ruela de Chinelo chega ao seu destino, muitíssimo bem acompanhado pelo Sol.
Era evidente que aquele lugar era meio esquisito, como que uma imagem levemente fora de foco, talvez a que vê quem olha por olhos míopes de meio grau. Todo mundo meio manco, ou meio vesgo, ou banguela, e todos sempre muito calados.
Talvez uma vila da idade média, com casas de pedras empilhadas, pequenas, decoradas com cadeiras, mesas e poltronas também de pedra.
No ar, o som estéreo de mil tubos de vidro etéreo soprados por dois mil beiços, sei lá eu onde. Lá tem uma gruta cuja outra saída êsfala que dá em Machu Picchu; talvez lá estejam os sopradores. Mas o som chegava, constante, noite e dia, ininterrupto. Um som muito agradável. Aliás, não era só um som, era mesmo uma música, com melodia, ritmo, andamento e pá.
No ar também havia o céu, lindíssimo. Mas, como o resto, diferente. Um céu claro, límpido, textura de cristal, e muito baixo, perto demais da gente.
Como se não bastasse, aquela banda larga aérea ainda transmitia um cheiro inebriante, meio azul, meio amarelo ocre; sempre sutil, mas nunca ausente. Uma hora ou outra trafegavam também alguns megabytes de cheiro de pão de queijo com chocolate quente, daqueles que carregam cachorro pelo focinho.
Aqueles dias foram de perambulação pela vila e, principalmente, pelas imediações, recheadas de cachoeiras, grutas, morros e essas coisas.
Num daqueles dias, no meio da estrada de terra, o carro de Ruela encosta, parando bem atrás de um homem. Definitivamente, era um nativo (o povo sem dente, ou sem olho, ou sem coerência, como eu tinha falado), vestido com uma calça meio escura, uma camisa de botão de manga curta meio clara, e de chapéu de palha. Ele estava agachado, na posição brasileira de lótus (feito quem está passando um fax para o presidente Lula), de costas para a estradinha. Parecia extremamente concentrado, parado, inerte, contemplando o vazio verde/azul, serenamente não pensando na vida. Estado inabalado até mesmo com a chegada agressiva, barulhenta, petulante e esnobe própria de um carro, estacionado bruscamente a centímetros de suas costas. Tampouco a música alta da vitrola do carro ou o abrir e fechar de portas venceram a indiferença.
E foi assim que, perguntado qual caminho seguir, o cara agachado de chapéu limitou-se a apontar com o indicador direito. Depois continuou estático, assistindo atento ao filme que ninguém mais via.
José Ruela então seguiu viagem, acompanhado da pulga atrás da orelha; ninguém sabe se a informação fornecida era correta.
Depois de muito refletir, percebeu que o pose de cagão era o/um/e/ou matuto.
De volta ao lar, já no primeiro dia trombou um amigo prego com quem não encontrava havia algum tempo:
- E aêê Zé Ruela, como é que tu tá?
- Zé Ruela é o caralho, meu nome agora é Biro-biro do Baticum, porra!
E o prego saiu, abalado.
No dia seguinte, Biro-biro deu entrada nos papéis pra fazer a alteração do seu nome.
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Em plena aula da primeira série, Albano, moleque muito gente boa, com a voz esganiçada, desafinando no final da frase, dispara o petardo:
- Dona Josenice, pra chover, a nuvem fura?
Imediatamente a casa cai. (Quase)todo mundo chora de rir, muito mesmo. Riram gargalhadas debochadas, carregadas de um tipo específico de arrogância, aquela própria de quem tem medo.
Até hoje eu não entendi qual foi a graça.
Tem alguns de vez em quando que são bastante freqüentes. Um deles, pra mim, é o choro. Tô lá, sossegado, e ele desce. Ou é com uma coisa, ou é com outra. É a saudade do que eu vi e ainda não, referida por Russian Reborn. Incomoda um pouco o grilo de não saber por que tudo isso, canta alto. Fora, muitas vezes, a vergonha.
Esse choro me sugere sutil e intensamente que eu não caibo em mim mesmo, que o corpo parece a casa do Snoopy, pequena por fora e imensa por dentro.
Ia deslizando tranquilamente entremeio a comunidade, reparando a beleza dos raios do sol refratados, que criavam cardumes de sombras lá embaixo, na areia, nas pedras e nas plantas. Pedras roladas...
Em rio de piranha jacaré nada de costas – ali não tinha piranha, nem ele era jacaré, então tranqüilo.
A vida continuava sendo luta, sempre, movimento constante, consciente e inconsciente, mas a correnteza é senhora. Além do mais, o leito está lá, lambido no mesmo lugar. Até a mesmo a correnteza não diz sua própria direção, ainda que tenha o domínio do sentido. E olha que ela própria (a correnteza) foi a responsável pelo desenho do leito.
O ambiente estava relativamente calmo, ninguém fugindo, ninguém se impondo, pelo menos não ainda. Mas calmaria é um negócio perigoso, ambíguo e traiçoeiro, o germe da tempestade está ali, pronto pra digivolver. Portanto, olho aberto, zé roberto.
Continuou o passeio, respirando aquela água pura, contemplando, mas atento, consciente, examinando o ambiente.
Foi quando avistou um negócio bem ali na frente, e a medida que se aproximava ele pode perceber que se tratava de nada mais nada menos que um sanduíche do peninha, violentíssimo, Dahause com muita maionese, pareceu. O sanduíche tinha praticamente ¼ da sua massa corporal, fácil. Não podia ser, era sorte demais. Flutuou um pouco ao redor do sanduba, antevendo o quanto ia ser bom aquele almoço quando lembrou da calmaria, a bendita calmaria, cuja inexorável tempestade bem poderia ser um companheiro de fome. Meteu a boca com vontade no sanduíche, engolindo-o de uma vez só.
Quando o gostinho da maionese começou a se mostrar ao paladar, sentiu uma coisa estranha que vinha de dentro, um certa tensão, um mal estar. Até que um movimento brusco, violento, começou imediatamente a puxá-lo para cima, direto de suas entranhas. Foi quando percebeu que tinha engolido junto com o sanduíche, um pedaço de ferro cheio de ganchos afiados, que enfiaram em suas vísceras e as veio rasgando até a parte de dentro da boca, onde a mucosa, mais forte, fez o anzol fixar-se.
Recomposto do susto, tentou lutar com todas as forças com aquela corda praticamente invisível, mas que o puxava implacavelmente, rasgando sua boca cada vez mais. A dor era imensa, mas ele não iria se entregar sem uma boa luta a um inimigo tão odioso, terrorista, covarde e cruel, que insistia em arrastá-lo para fora de sua dimensão. Era verdade, afinal, o folclore sobre os outros que simplesmente desapareceram. Mas, ao contrário da crença, não se tratava de arrebatamento, isso ele teve certeza.
Foi assim que, esgotado de tanto esforço e dor, foi apresentado à dimensão dos ventos, e ao "desgraçado dono dessa zorra toda."
Aquele gigante fedorento o pegou com sua grande mão, segurou-o e acabou de esfacelar sua boca, arrancando com força descomunal os ganchos lá presos.
Jogado ao chão, começou a debater-se, sem conseguir respirar, com o interior do corpo totalmente mutilado, o que lhe causava uma dor horrenda, até que começou a perder as forças. Seu corpo pulava cada vez mais baixo, debatia-se cada vez mais devagar, devagar, devagar...
Praticamente sem forças, lembrou de pequenos instantes de toda a sua vida... a amizade de infância com aquele girino marginal que nunca mais foi visto, a primeira vez que sentiu o roçar de escamas, os dribles perfeitos que até então tinham lhe assegurado a sobrevivência, garantindo o seu lado até mesmo contra os botos...
Nem a dor tinha mais vigor, tamanha a exautão. Já envolto num silêncio absoluto, sentiu a iminência do desfalecimento completo – tempo suficiente pra pensar consigo "meu sangue não, palhaço – carne branca.".
Tão sem graça quanto essa historinha aí é ficar parado, latinha na mão, na beira do rio, esperando a fisgada.
Não entendo como alguém pode achar pescaria um bom programa.
Mas o mais sinistro não é o mau gosto, mas a indiferença em relação ao sofrimento alheio. É bicho mesmo, mas e daí?
A indiferença é pior que o ódio. Indiferença é desumano.
Praça é muito massa. Principalmente em cidade grande, dá a impressão de um mundo paralelo, mais aconchegante, reconfortante.
Quando a praça é praça mesmo, grande, imponente, parece outro mundo, trespassado e sobreposto ao mundo comum. Igual, mas diferente, a começar pelo som. Uma ilha rodeada de realidade por todos os lados.
Mas tem uma coisa que sempre que incomodou: a existência de dois tipos de caminhos de praça. Um, é o dos caminhos de cimento, pedra, etc, feitos pela prefeitura ou sei lá eu quem. O outro, é o das mini trilhas no meio da grama, atalhos usados por quem passa.
Os primeiros são longos, cheios de 90 graus e fazem você andar mais, sempre.
Os segundos geralmente são a menor distância entre onde se entra e onde se sai da praça, percorrendo uma linha reta entre os dois pontos; eles é que são os caminhos efetivamente usados pelo povo. São, no fim das contas, os caminhos de verdade; já eram, antes de serem.
Haverá um motivo oculto pra essa renitência em ignorar o caminho natural das coisas?
Já tinham conversado sobre o assunto algumas vezes, parece. Naquela época era mais ação, menos reflexão.
Aí, num belo dia (que é o que não falta) ninguém tinha dinheiro pra pagar o ônibus. Entrar em um era aceitar o pacote, era seguir o plano até o fim, se dançar tá fudido (sacou?), pelo menos quando se tem 11, 12 anos.
Vão andando e cogitando andando e cogitando andando e cogitando andando e cogitando e pára um. O fédaputa pula pra dentro, é o mais mala, safado, sem vergonha, que merda, vai um vai os três.
A viagem mais deliciosa começa. O mundo do lado de fora da janela fica meio dourado, o tempo diferente, barriga fria, saco frio, pequeno, o som da catraca alto pra caramba, a mesma coisa com os assobios seguidos das pancadas das portas.
A gente sempre faz merda e sempre tem sorte, sempre dá um jeito, vai dar certo. Não outro jeito também, entrou, fudeu. Fica tranqüilo, sem vacilar, assovia, olha pra fora, fala de homim do he-man, já lembra daquela parada lá e tal.
Bom mesmo ia ser roubar a grana do cobrador, mas não dá. Mas é foda, ganha dinheiro até, sem gastar um tostão. Isso porque ninguém imaginava quem era o dono, porque se soubesse...
De repente, acaba a subidona. Sinal que daqui a pouco, no fim da subidinha, vira, e aí o bicho começa a pegar. O primeiro ponto da rua já daria pra descer, mas o próximo é melhor.
Pára no ruim, continua, o barulho do motor brincando com as marchas massageando a cabeça, vibrando a barriga (I'm alive...), e vai chegando perto. Muito vazia a nave, não tem ninguém pra levantar e puxar a cordinha. Se passar batido só tem mais uns dois pontos de distância razoável. Mas não, tem gente acenando, o ônibus pára. Dá medo de olhar pra cara do outro, mesmo assim rola entre-intra-olhares, mas todo mundo afina.
Continua a treta do motor ronronrando e as portas assoviando e batendo, passa a igreja, passa o pé de porco, e já chega o outro ponto. Não sei se existia ali um código nesse sentido, mas o primeiro a entrar foi o primeiro a falar falou e tchau. Pula mais um e já saem correndo com tudo sem olhar pra trás. Quando resolvem olhar, nada do outro, o gordo. Fudeu, cadê o cara? Dançou, vai preso.
Aí o ônibus sacode e pula lá de dentro o gordo, com a língua pra fora, mordendo, a cara de safado sem vergonha correndo e rindo os três vão correndo e rindo e indo correndo rindo muito demais pra correr correndo muito demais pra rir e rir e rir e rir e rir e rir e rir e rir e rir e rir até gravar, bem fundo no HD de vinil, o riso eterno de quem foi criança de verdade, rolando no chão de felicidade.
Certo, o canal é o caminho do meio, nem oito nem oitenta, Tai-ki, equilíbrio.
Mas para aprender e entender as coisas, nada melhor que ir beber a água dos extremos. É lá que está a essência do trem, é lá que dá pra engolir sem filtrar nem ferver.
Por isso eu gosto das impressões do muito pobre ou do muito rico, do muito feio ou do lindo, do gato ou do cachorro, do menino ou do velho. E uma vez, num restaurante natural de Brasília, obviamente freqüentado por pessoas cool, tive a oportunidade de sentar à mesa com um senhor (lembrando que em lugares assim, cools, a onda é sentar na mesa com uns 4 ou 5 estranhos – o que pode ser ótimo, péssimo ou só desconfortável, depende da sorte), oficial militar aposentado, já ocupando o seu derradeiro posto, de onde pode observar, alheio, a vida. (Essa última parte pode ser fruto das minhas imaginações romanceadoras, mas tudo bem. Quem não é doido?)
Então, mas o Seu Joaquim me falou uma coisa que o pai dele dissera-lhe (pai do cara? Quê isso, informação antiga pra caralh*, eu pensei na hora): "Meu filho, com uma garrafa de pinga você compra seis brasileiros".
Concordei com aquilo na agora, já imaginando que eram 18 doses, dividido por 6 = 3 pra cada um. Dá um grau já.
Lembrei também do Pezão, amigo meu que nasceu com uns 30 anos de idade, o qual não vejo desde a adolescência – hoje deve estar com uns 90 e poucos. A gente vagava pelas ruas do Santo Antônio, com o Cristiano e o Gustavo, e enquanto nós três nos ocupávamos exclusivamente com a nossa própria dimensão infante, ele já conseguia olhar para as coisas e enxergar classes sociais, cilindradas de carros, tesão, oprimidos e opressores, juros e correção monetária, cartório de registro de imóveis, preço da gasolina, INSS do peão da fazenda... estruturas gerais da dimensão dos homens adultos, enfim.
Sempre que a gente passava pelo bar do totó no sábado à tarde, olhava lá para dentro e via uma porrada de cara, tumultuando o lugar, impedindo a gente de jogar nosso totó. Pra nós três, era isso, um tanto de caras. Mas o Pezão sempre dizia: "Pobre é uma desgraça. Recebe da obra o dinheiro da semana e já vai pro boteco gastar com pinga".
Aí, no pós flashback, eu vi o quanto a gente pode ser barato, o quanto é fácil deixar o homem médio, como diz o outro, satisfeito aqui no Brasil. Ou no mundo, sei lá.
E aí de vez em quando eu penso no meu próprio preço. Serei eu barato demais? Ou caro demais?
O problema de se ter um preço alto é que quem te compra é sempre você mesmo. Maior preju.
Na minha terra a gente chama as mulher de dona. Dona Terezinha, Dona Barbinha, Dona Josenice, Dona Conceição. A gente chama elas de senhora também.
Pior que é mesmo, e é também que o dom é senhor. Um dom é senhor de quem o teve de presente. O presente é de graça, mas tem um preço.
Descobri que o Fernando Sabino era baterista de jazz e o vi falando que escrever lhe doía, enquanto a batera era a diversão. E aí o povo falando que ele era plúrimo e tudo mais.
Verdade, e acho que dá para dizer que ele não teve muita escolha, porque o batuque já era dele, já era ele, já se dera a ele, já cedera-se-lhe, e a parada é intransferível e irrecusável. Sob pena de angústia seguida de morte (viva). O homem como instrumento de uma manifestação que, uma vez natural, é implacável e não te perguntou nada.
Não dá para calar a voz de quem canta. Pode ser brega, mas é verdade.
Se todo mundo contasse com um talento artístico, ninguém prendia passarinho.