sexta-feira, 16 de julho de 2010

Con(s)(c)erto

Meu violão não canta mais. Ele, que antes soava muito melhor do que se poderia supor pelo preço que me custou, agora só balbucia, trasteja, estala. Não mais toco música nele, apenas o toco, roçando meus dedos na sua cara e minha barriga nas suas costas.

Ele veio falar comigo. Disse que está arrasado, que mesmo diante da insignificância do meu talento com os instrumentos de cordas, sente muita saudade do tempo em que ainda estava inteiro, do tempo em que comecei a aprender os primeiros acordes com aquele professor de violão. Até chorou ao lembrar-se de mim engatinhando, depois dando meus primeiros passos (e por aí parando, pois foi onde consegui chegar). Lembrou de quantas vezes eu cheguei em casa chorando de tristeza, de raiva ou de saudade, peguei-o no colo e lancei meu berro no espaço enquanto batia minhas mãos desajeitadas em seu corpo, em suas cordas, e de como, depois de duas ou três músicas, estava de volta ao meu estado de espírito usual.

Disse que me é muito grato pelas viagens em que o levei e ainda levo, e ficou me lembrando de nossa última ida para a Chapada dos Veadeiros, há pouco tempo, quando ficamos tocando sob uma noite sem Lua e com todas as estrelas do céu, iluminados e aquecidos pela fogueira que eu fiz, sentados no meu saco de dormir que me acompanha há vinte anos, desde o escotismo.

E me pediu para eu ter em mente que ele sempre se esforçou, sempre quis estar ao meu lado, mesmo quando eu trocava suas cordas de aço pelas de nylon, poupando as pontas dos meus dedos em detrimento do seu timbre original rock ‘n roll. Sim, mesmo tendo um pouco de vergonha daquele timbrezinho bicho grilo meio gay dos encordoamentos de nylon, nunca teve vergonha de mim, inclusive nas ocasiões em que eu me propunha ao ridículo de tocá-lo na presença de terceiros (as).

Disse que sempre sacou que eu o uso como mero meio, que minha verdadeira paixão é o canto, e não o violão, mas que nunca se importou com isso, e que sempre gostou de ver minha alegria enquanto cantava.

E, com muito tato, lembrou-me do motivo pelo qual seu declínio começou: você. Me mostrou o abalo em sua estrutura causado pelo contato contigo, me mostrou que seu braço ficou fraco, e se verga mesmo ante a baixa tensão das delicadas cordas de nylon.

Mas me cortou o coração a forma como me olhou e finalmente me soltou, com a voz embargada, a pergunta presa há tempos em sua alma dissonante: porquê eu o deixei sozinho contigo? Como eu pude ser tão displicente, negligente, imprudente, ao deixá-lo a mercê de uma pessoa sabidamente perigosa para com os objetos que a cercam, sejam animados ou inanimados? Como confiar em alguém tão desprovida de sensibilidade, a ponto de deliberadamente machucar um instrumento musical?

Foi, de fato, muito difícil essa conversa. Ele tem razão, eu jamais deveria ter feito isso, por mais complicado que fosse para mim naquele momento específico ter a presença de espírito e agilidade física e mental necessários para protegê-lo. Alguns minutos de descuido e... pá, tarde demais. Pude apenas tentar mostrar-lhe que passamos, os dois, pela mesma provação.

Então prometi-lhe que não vou nunca mais submetê-lo a nenhum luthier, ou benzedeira, ou garrafadas, quimioterapia, análise, nada. Chega de sofrimento inútil.

Continuaremos nós dois, como sempre foi, talvez até mais unidos, pois agora somos ambos medíocres, compartilhando nosso estresse pós traumático.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Azul

Gosto muito mais de correr sob o sol que dentro da noite. Você corre, ganha resistência e ainda sai energizado. Afinal de contas, fica em contato direto com o coração do sistema solar, ao mesmo tempo em que sincroniza sua passada e seus batimentos cardíacos com o próprio beat do universo. Coisa linda.

Finalmente aprendi, então, que é muito melhor correr de viseira do que de boné, é muito mais leve, confortável e te permite sentir o vento não só na cara, mas também na cabeça. Parece que você não está usando nada, a não ser pela visão insistente da aba contra o céu.

Ganhei uma viseira cuja aba é azul, da cor do céu de Brasília de manhã. Agora nem vejo que estou com alguma coisa na cabeça, porque a aba, único lembrete, funde-se com o teto azul despojado de nuvens do inverno candango, como se fosse um camaleão montando minha cabeça.
Entretanto, mesmo sem eu perceber, aquela aba safada continua lá, escondendo tanto meu rosto do sol quanto qualquer coisa acima de mim dos meus olhos. Imagino quantos pássaros voando ou pousados nas copas das árvores deixei de admirar, na tentativa de evitar um câncer de pele na cara, sem sequer perceber que não os podia ver.

O fato é que qualquer outro obstáculo à minha visão plena do mundo poderia perfeitamente passar despercebido, por mais defasada que ficasse minha percepção.

Imagino-me o homem com aqueles antolhos na cabeça, feito cavalo. Se as palas que impedem a visão periférica tiverem a cor do senso comum, das suposições em que todo mundo acredita, ficaria invisível, camuflada.

E mais: se os antolhos fossem-me retirados, sairia eu em disparada, assustado com o que me era invisível, como um cavalo?

Viver à sombra da luz do universo, com medo do sol?