Ia deslizando tranquilamente entremeio a comunidade, reparando a beleza dos raios do sol refratados, que criavam cardumes de sombras lá embaixo, na areia, nas pedras e nas plantas. Pedras roladas...
Em rio de piranha jacaré nada de costas – ali não tinha piranha, nem ele era jacaré, então tranqüilo.
A vida continuava sendo luta, sempre, movimento constante, consciente e inconsciente, mas a correnteza é senhora. Além do mais, o leito está lá, lambido no mesmo lugar. Até a mesmo a correnteza não diz sua própria direção, ainda que tenha o domínio do sentido. E olha que ela própria (a correnteza) foi a responsável pelo desenho do leito.
O ambiente estava relativamente calmo, ninguém fugindo, ninguém se impondo, pelo menos não ainda. Mas calmaria é um negócio perigoso, ambíguo e traiçoeiro, o germe da tempestade está ali, pronto pra digivolver. Portanto, olho aberto, zé roberto.
Continuou o passeio, respirando aquela água pura, contemplando, mas atento, consciente, examinando o ambiente.
Foi quando avistou um negócio bem ali na frente, e a medida que se aproximava ele pode perceber que se tratava de nada mais nada menos que um sanduíche do peninha, violentíssimo, Dahause com muita maionese, pareceu. O sanduíche tinha praticamente ¼ da sua massa corporal, fácil. Não podia ser, era sorte demais. Flutuou um pouco ao redor do sanduba, antevendo o quanto ia ser bom aquele almoço quando lembrou da calmaria, a bendita calmaria, cuja inexorável tempestade bem poderia ser um companheiro de fome. Meteu a boca com vontade no sanduíche, engolindo-o de uma vez só.
Quando o gostinho da maionese começou a se mostrar ao paladar, sentiu uma coisa estranha que vinha de dentro, um certa tensão, um mal estar. Até que um movimento brusco, violento, começou imediatamente a puxá-lo para cima, direto de suas entranhas. Foi quando percebeu que tinha engolido junto com o sanduíche, um pedaço de ferro cheio de ganchos afiados, que enfiaram em suas vísceras e as veio rasgando até a parte de dentro da boca, onde a mucosa, mais forte, fez o anzol fixar-se.
Recomposto do susto, tentou lutar com todas as forças com aquela corda praticamente invisível, mas que o puxava implacavelmente, rasgando sua boca cada vez mais. A dor era imensa, mas ele não iria se entregar sem uma boa luta a um inimigo tão odioso, terrorista, covarde e cruel, que insistia em arrastá-lo para fora de sua dimensão. Era verdade, afinal, o folclore sobre os outros que simplesmente desapareceram. Mas, ao contrário da crença, não se tratava de arrebatamento, isso ele teve certeza.
Foi assim que, esgotado de tanto esforço e dor, foi apresentado à dimensão dos ventos, e ao "desgraçado dono dessa zorra toda."
Aquele gigante fedorento o pegou com sua grande mão, segurou-o e acabou de esfacelar sua boca, arrancando com força descomunal os ganchos lá presos.
Jogado ao chão, começou a debater-se, sem conseguir respirar, com o interior do corpo totalmente mutilado, o que lhe causava uma dor horrenda, até que começou a perder as forças. Seu corpo pulava cada vez mais baixo, debatia-se cada vez mais devagar, devagar, devagar...
Praticamente sem forças, lembrou de pequenos instantes de toda a sua vida... a amizade de infância com aquele girino marginal que nunca mais foi visto, a primeira vez que sentiu o roçar de escamas, os dribles perfeitos que até então tinham lhe assegurado a sobrevivência, garantindo o seu lado até mesmo contra os botos...
Nem a dor tinha mais vigor, tamanha a exautão. Já envolto num silêncio absoluto, sentiu a iminência do desfalecimento completo – tempo suficiente pra pensar consigo "meu sangue não, palhaço – carne branca.".
Tão sem graça quanto essa historinha aí é ficar parado, latinha na mão, na beira do rio, esperando a fisgada.
Não entendo como alguém pode achar pescaria um bom programa.
Mas o mais sinistro não é o mau gosto, mas a indiferença em relação ao sofrimento alheio. É bicho mesmo, mas e daí?
A indiferença é pior que o ódio. Indiferença é desumano.