segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Vazio

Quando o homem entrou pela porta, nada passava em sua cabeça. Não lembrava mais do cachorro de sua infância, nem de quando as ruas eram de terra, ou do quanto era feliz ontem, nem do quanto é infeliz hoje. Não pensava que seria ótimo comer um prato de mexido de banana com queijo, nem lembrava do quanto gostava de tomar um vinho.
Mulher, não lembrava nem que existia, quanto menos do cheiro que traz entre as pernas ou o gosto dos peitos.
A raiva pela dinâmica das relações (im)pessoais do mundo, o amor pela família, a compaixão pelos animais - nada.
Todo o seu ser, e também seu não ser, tudo tomado por uma angústia sem fim, nem começo, nem limites, que ao mesmo tempo lhe sufocava completamente e lhe trazia a urgência de correr como Forrest Gump.
De todas as lembranças ausentes, talvez a principal fosse o momento exato em que se perdeu, em que as coisas deixaram de estar tudo bem para se tornarem um tormento sem fim.
Olhou muito tempo pela janela, e não entendia como tudo lá fora era tão bonito, e como tudo dentro era tão hostil.
Então lembrou de Deus, ou das pessoas lhe falando sobre Deus, e pensou como é que podiam existir tantos deuses no mundo, um para cada ser consciente da Terra. E se questionou se o seu Deus poderia lhe indicar a saída. Porque ao contrário de várias pessoas que conhecia, não acreditava muito que depois de ter ganhado a vida, um corpo (quase) perfeito, inteligência, sensibilidade, uma ótima infância, poderia ainda pedir alguma coisa. A existência já não é o maior presente?
Antes que chegasse a alguma conclusão, sua atenção foi captada pelo não-vôo de um beija flor azulado com a cara enfiada numa flor de ipê. E, mais uma vez, esqueceu de si. E berrou, com força igual a imensa dor que sentia, tão alto que ninguém ouviu. Ninguém nunca ouviu aquele berro, como todos os outros anteriores. E se encolheu, querendo dormir, talvez. E dormiu, desejando nunca mais acordar.

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