Quando o homem entrou pela porta, nada passava em sua cabeça. Não lembrava mais do cachorro de sua infância, nem de quando as ruas eram de terra, ou do quanto era feliz ontem, nem do quanto é infeliz hoje. Não pensava que seria ótimo comer um prato de mexido de banana com queijo, nem lembrava do quanto gostava de tomar um vinho.
Mulher, não lembrava nem que existia, quanto menos do cheiro que traz entre as pernas ou o gosto dos peitos.
A raiva pela dinâmica das relações (im)pessoais do mundo, o amor pela família, a compaixão pelos animais - nada.
Todo o seu ser, e também seu não ser, tudo tomado por uma angústia sem fim, nem começo, nem limites, que ao mesmo tempo lhe sufocava completamente e lhe trazia a urgência de correr como Forrest Gump.
De todas as lembranças ausentes, talvez a principal fosse o momento exato em que se perdeu, em que as coisas deixaram de estar tudo bem para se tornarem um tormento sem fim.
Olhou muito tempo pela janela, e não entendia como tudo lá fora era tão bonito, e como tudo dentro era tão hostil.
Então lembrou de Deus, ou das pessoas lhe falando sobre Deus, e pensou como é que podiam existir tantos deuses no mundo, um para cada ser consciente da Terra. E se questionou se o seu Deus poderia lhe indicar a saída. Porque ao contrário de várias pessoas que conhecia, não acreditava muito que depois de ter ganhado a vida, um corpo (quase) perfeito, inteligência, sensibilidade, uma ótima infância, poderia ainda pedir alguma coisa. A existência já não é o maior presente?
Antes que chegasse a alguma conclusão, sua atenção foi captada pelo não-vôo de um beija flor azulado com a cara enfiada numa flor de ipê. E, mais uma vez, esqueceu de si. E berrou, com força igual a imensa dor que sentia, tão alto que ninguém ouviu. Ninguém nunca ouviu aquele berro, como todos os outros anteriores. E se encolheu, querendo dormir, talvez. E dormiu, desejando nunca mais acordar.
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
sábado, 3 de outubro de 2009
Me diz: porque o céu é azul?
O menino tinha uma coleção de pupas. Pupa é a fase da vida da borboleta em que ela não é nem lagarta, nem borboleta. Ela só é. Casulo não é conteúdo, é continente.
Pegava um pedaço de linha dez e ia prendendo a hastesinha das pupas com um nó-de-correr, e deixava pendurado o varal de metamorfoses em cima do tanque.
Era fascinante ver aquela lagarta em preto e amarelo, parando de cabeça para baixo de uma hora p/ outra, dependurando-se com a bunda, fazendo um abdominal e ir tecendo com as mil pernas aquele casulo verde com dourado.
Nessa hora dava p/ colher as pupas, e pendurar no varal. Depois, elas iam escurecendo, ficando azuladas, acinzentadas, até que dava pra ver a borboleta apertadinha lá dentro, a casca da pupa já totalmente transparente.
Então a borboleta sai, e abre as asas. Fica abrindo e fechando as asas para secar e endurecer, e depois de quase um dia desse jeito, sai voando. Qualquer treta na hora de sair, faz a asa enrolar em si mesma e aí já era.
Como era mágico assistir a uma metamorfose. Ele se certificou que não sobrava nada mesmo, abrindo com estilete as pupas em diversas fases, e viu que só o que havia era um líquido fedorento.
No futuro, ele iria pensar que as crianças têm que aproveitar a facilidade natural de enxergar milagres, senão o adulto nunca vai conseguir ver nada que importe de verdade.
Saberia ele que o poder do Sol causa menos impacto que a versão nova do iPhone. Que a água evaporando, depois caindo, depois refletindo um arco íris, passa despercebido perto da marca da Red Bull ou dos móveis padronizados da Toc Stok. Que o vôo dos aviões é mais admirado que o dos pássaros, e que a beleza da TV de plasma chama mais a atenção que os próprios fundamentos da existência da eletricidade, das ondas de rádio e do campo eletromagnético, que ninguém inventou, mas que move tudo que foi inventado.
Saberia ele que o grande milagre da vida é o despertar para o fato de que tudo na vida é um milagre.
Pegava um pedaço de linha dez e ia prendendo a hastesinha das pupas com um nó-de-correr, e deixava pendurado o varal de metamorfoses em cima do tanque.
Era fascinante ver aquela lagarta em preto e amarelo, parando de cabeça para baixo de uma hora p/ outra, dependurando-se com a bunda, fazendo um abdominal e ir tecendo com as mil pernas aquele casulo verde com dourado.
Nessa hora dava p/ colher as pupas, e pendurar no varal. Depois, elas iam escurecendo, ficando azuladas, acinzentadas, até que dava pra ver a borboleta apertadinha lá dentro, a casca da pupa já totalmente transparente.
Então a borboleta sai, e abre as asas. Fica abrindo e fechando as asas para secar e endurecer, e depois de quase um dia desse jeito, sai voando. Qualquer treta na hora de sair, faz a asa enrolar em si mesma e aí já era.
Como era mágico assistir a uma metamorfose. Ele se certificou que não sobrava nada mesmo, abrindo com estilete as pupas em diversas fases, e viu que só o que havia era um líquido fedorento.
No futuro, ele iria pensar que as crianças têm que aproveitar a facilidade natural de enxergar milagres, senão o adulto nunca vai conseguir ver nada que importe de verdade.
Saberia ele que o poder do Sol causa menos impacto que a versão nova do iPhone. Que a água evaporando, depois caindo, depois refletindo um arco íris, passa despercebido perto da marca da Red Bull ou dos móveis padronizados da Toc Stok. Que o vôo dos aviões é mais admirado que o dos pássaros, e que a beleza da TV de plasma chama mais a atenção que os próprios fundamentos da existência da eletricidade, das ondas de rádio e do campo eletromagnético, que ninguém inventou, mas que move tudo que foi inventado.
Saberia ele que o grande milagre da vida é o despertar para o fato de que tudo na vida é um milagre.
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